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          Por Maria Alice Milliet

          In folheto dobrado da individual O oco e a origem,
          Paço Imperial do Rio de Janeiro e
          catálogo do Panorama da Arte Brasileira, São Paulo, 1997

 

O Oco e a Origem

 

Do choque à indiferença, de objeto de escândalo ao escândalo do não-objeto, da diversão ao recolhimento, assim caminha a arte desse século. Quando o prazer do novo envelhece, quando o extraordinário é repetido incessantemente, quando o excesso anestesia, então começa um movimento em busca do que foi perdido na origem. Frequentemente nostálgico, romântico em essência, o caminho de volta acontece. À margem das grandes promoções culturais, muitos jovens fazem da criação plástica uma viagem dentro de si mesmos e buscam um diálogo com o mundo.  A verdade é que o experimentalismo da arte atual é ainda assunto para iniciados.

Nessa introspecção, o corpo tem sido preocupação dominante. Como último reduto do eu, como único aparato do ser, a fisicalidade do corpo e suas implicações biológicas, psíquicas e sociais ocupa quase que obsessivamente uma geração. Não vejo essa escolha como opção sensacionalista. Vejo como necessidade íntima e premente que vai no sentido inverso da assimilação acrítica do que se poderia chamar de política do corpo num cenário onde a clonagem aparece como o último estágio da modelização do ser humano. Nada a estranhar, pois como dizia Barthes, “a História, afinal, é a história do lugar fantasmático por excelência, isto é, do corpo humano”. É a partir desse fantasma, buscando nele “a ressureição lírica dos corpos” que alguns artistas hoje engendram suas poéticas, registros inquietantes do que assombra o homem contemporâneo.

Marta Strambi, vinha nesse caminho desde 1992, mas só agora fica claro seu percurso. Quando ainda trabalhava o quadro, aparecia na tela um relevo. O efeito era obtido pela adesão de um tecido a um objeto; removido o objeto e colado o pano sobre a tela resultava um plano em dado momento perturbado por uma protuberância. No inchamento da superfície estava a intuição do espaço topológico; no uso de estampados floridos a alusão à pintura. Vieram, a seguir, as películas de material sintético corrompidas pela queima. Os acontecimentos promovidos pela ação do fogo e do ar traduziam-se em acidentes topográficos: o plástico incolor perdia a pureza pela adesão dos negros fuliginosos e retinha as marcas da agressão em rugosidades e crateras. Nessas duas séries, a superfície define o espaço em estreita relação formal com o que virá depois.

  No momento, é pela moldagem do corpo que se constrói a obra. Ao usar o corpo como molde, a artista lhe confere o status de matriz donde retira múltiplos. Emprega o silicone, matéria dúctil e maleável, que aderido ao corpo, dele assume a forma e retém a textura, tépido e macio como a própria pele. Pela maquilagem lhe dá coloração aplicando os mesmos produtos destinados ao embelezamento das mulheres. A película sintética maquiada em epiderme se estende em forma e contra-forma de um vazio. A topologia de um ser vivente é aqui substituída pela artificialidade teatral de um corpo ausente. Artesanalmente, a artista chega à produção seriada onde, ao contrário dos processos micromoleculares de reprodução genética, cada artefato reduz-se a uma prótese externa, artificial. Justo por isso, cada fragmento funciona como índice tendo no corpo seu referente.   

Nas peças em exposição, a forte relação com o original que pretendem simular vem de uma fatura tecnicamente competente, mas não fria porque permeada de afetos: a necessária manipulação do corpo (quase carícia) exigida pelo processo de moldagem conduz ao reconhecimento de suas particularidades e heranças enquanto o tratamento cosmético (recurso iludente) revela disposição de seduzir. Seios, nádegas, barrigas e entranhas recordam as densidades da carne, os côncavos e convexos habitados, a viscosidade dos líquidos corpóreos. É difícil resistir ao desejo de tocá-los. Porém, se são atraentes, são também repulsivos pela sugestão mórbida de corpos despedaçados. Um exemplo: Marta faz a moldagem dos dedos dos próprios pés e neles descobre traços de seus antepassados (relação biológica/individuação); montada a sequência, constata a aparição de estranhos pés sob a orla de um manto (relação fantasmática/ dissolução do eu no coletivo). Esse manto abriga em suas dobras um corpo que é histórico, marcado por medos e gozos trazidos de um tempo recuado, porém, constantemente atualizado. Também no espectador essas obras suscitam o imaginário do corpo numa indagação silenciosa de vida e morte.

 

inverno de 1997