Por Marco do Valle
In catálogo da exposição individual, Museu de Arte de Ribeirão Preto
Lugares fora do corpo
Para compreensão de nossa cultura parece-nos que foram os gregos, seguidos dos romanos, que inicialmente se depararam com a representação ou mimeses ou, como estou preferindo denominar, com a construção de lugares à semelhança do corpo, não exatamente duplicando a realidade, mas criando um lugar de semelhante forma fora do corpo. Na Grécia arcaica, as representações escultóricas ainda estavam ligadas a posição corporal da escultura egípcia nos Kouros – que representavam plural de Korai homem jovem – e nas Korai – representavam plural de Koré mulher jovem sem, contudo, incluir a semelhança exata com os jovens representados. Eram ainda esculturas de formas genéricas talvez ligadas a formas mágicas. Estas esculturas não correspondiam a fragmentos de corpo, eram uma forma “una” que marcava a diferença entre as três partes do corpo humano, como um lugar de correspondência biunívoca entre as partes da escultura e o corpo dos jovens representados.
A perenidade dos materiais de que se construía estes corpos, no trabalho escultórico e arquitetônico, foi alterada para construções em pedra, na reconstrução do Paternon (447-432 a.C.) e da Acrópole no governo de Péricles, pelo arquiteto Ictino e por seu escultor Fídias. A escultura chega até Praxíteles com a maior desenvoltura na delicadeza de seu movimento e representação, no entanto, o conceito de retrato, já incluído parcialmente na “Cabeça de Alexandre o Grande” (c. 325-300 a.C.) de Lísipo – escultor preferido de Alexandre apesar de ter se preocupado com uma representação de altivez introduzindo rugas em seu rosto, franzindo sua testa – não nos parece, contudo, ser um verdadeiro retrato e sim estar mais comprometido com a idealidade da arte grega. Foram os romanos que introduziram as máscaras mortuárias de cera de seus mortos, criando moldes de sua pele, seguindo também a realização de inumeráveis cópias de estatuárias gregas. Portanto, foram os costumes e o conhecimento desta estatuária que fizeram com que os romanos chegassem ao retrato escultórico, foram eles também que, produziram uma forma de terapia ao corpo e ao prazer nas termas, como também estabeleceram o saneamento e a higiene através de redes de águas, através de aquedutos, estabelecendo assim nosso modelo de cidade.
Afinal para que este verbete sobre estas contribuições da história da arte e da humanidade como introdução deste texto? – A resposta a esta pergunta talvez seja meu reconhecimento imediato nas operações desenvolvidas na construção destes trabalhos de um todo único, ou seja, desde seus aspectos de modelagem da “escultura como pele” até a construção de simulacros de ambientes privados reservados a higiene íntima que a artista denomina de “realidade construída”, seguidos por outras, as quais denominou de “campos derivados”.
Poderia dizer que fui remetido a matriz que relaciona, que organiza as metáforas construídas pelo trabalho, seu desejo estético e seu caráter de idealidade da escultura grega, como também a origem do molde na superfície e reprodução da forma da pele na máscara mortuária de cera romana. Nos moldes de silicone nos trabalhos denominados de “A pele como escultura” temos superfícies modeladas de partes do corpo, que seguem como mantas de silicone criando um continuum pelo espaço, ou estão unidas por fundição em linha, por uma repetição, seriadas ou separadas. Na obra “Uno” de 1997, temos uma seriação dos dedos dos pés alinhados – direito e esquerdo – na posição de “pés juntos” que aparecem como protuberâncias ou dentes da arcada dentária em número escolhido de “sete”. A escolha dos “pés juntos” poderia nos remeter novamente à tradição da escultura, como na “Koré” grega proveniente da escultura egípcia, mas esta colocação de pés ligados, protuberantes e pendurados à parede por uma espécie de manto, contém operações imagéticas de nosso mundo, relacionando morte e destino como metáforas.
A “realidade construída” como simulacro, envolve a escolha de lugares de higiene ou lugares íntimos e a utilização de materiais e técnicas construtivas destas arquiteturas, pertencem aos romanos, são eles que construíram as termas de Caracale, que trabalharam com revestimentos em mármore em suas arquiteturas de betão e pisos mosaicos. No entanto as construções apresentadas nestas esculturas não são espaços, mas assemelha-se a bases cúbicas sobre as quais também os romanos descarregavam suas colunas. No trabalho “Privatto”, de 1998, reencontramos, portanto, uma referência tanto da escultura greco-romana como da arquitetura romana, onde na posição dos pés e pernas da escultura, podemos ver que o movimento e a leveza clássica estão presentes, causando, no entanto, estranhamento, dadas as tatuagens nas pernas, onde os romanos amarravam suas sandálias.
Claro que o ready-made de Duchamp é lembrado e que curiosamente também pertence a um lugar íntimo de higiene e saneamento, no entanto, inclui a ideia de designer e seriação de uma peça em louça branca de banheiro masculino e parece evidente que o branco aqui também estabelece relação com a estatuária grega. Duchamp estabeleceu um avesso, possível e interessado, oposto as Belas-Artes, também assinou a peça desencadeando a morte das artes.
O trabalho de Marta Strambi, neste sentido, propõe recuperar este lugar do artista, que faz com as mãos, ao estabelecer uma arte humanista e política onde a estrutura asséptica e a tradição da escultura e arquitetura servem de construto, ou narrativa, para estabelecer o contraste com a cultura de final de século XX que está abordando. Trabalhos como “Proposição com escorpião” e “Fonte para Salamandras” são construtos da mesma ordem que “Privatto”, no entanto possuem, respectivamente, o primeiro uma torneira e o segundo um esguicho de bidê, nos quais as peças de louça correspondentes a nossos banheiros atuais foram totalmente apagadas, sendo, portanto, opostas a Duchamp, buscam a construção do simulacro.
Em “Fonte para Salamandras” são as mãos juntas que assentam a escultura – as mãos ao invés dos pés na tradição escultórica – unidas como que por algemas, representadas pela tatuagem da salamandra. As tatuagens, em nossa cultura, correspondem a um dos aspectos de culto ao corpo, impregnando a pele por marcas definitivas, construídas com dor; outros corpos buscam nos anabolizantes a forma física dos espartanos diante deste mundo da imagem e do produto, temos ainda as possibilidades de clonagem genética, os transgênicos da engenharia genética e as portas da liberação de fetos humanos para testes. Portanto, a morte e os destinos em nossa cultura se juntam, assim como no trabalho denominado de “campos derivados” o “Fadário” de 1998, onde a identidade do recém-nascido é autenticada pelo carimbo de seus pés em nossa cultura. Encontra-se modelado por silicone e carimbado por uma “tarja de leitura magnética”, como produtos quaisquer de nossa sociedade de consumo.
Aqui também gostaria de introduzir uma outra relação curiosa entre a identidade romana do culto aos mortos, na modelagem da máscara mortuária, com a modelagem dos pés, propostos pela artista, carimbados pela identidade eletrônica pós-moderna. Primeiramente vemos a identidade como morte, ou lembrança, gravada no rosto e a identidade como nascimento, gravada em série nos pés. Neste segundo caso, parece indagar sobre os destinos de nossa civilização ou imaginar-se sem alternativa, voltando a estar entregue a um destino mágico. Em outro trabalho desta mesma denominação, “Havaianas”, o mundo da mídia esta sendo apontado; e novamente não se trata de um ready-made, estando mais próximo da escultura Pop, onde se encontram ausentes as tiras da sandália e sua sobra, ou a ausência foi substituída pela tatuagem da frase: “não tem cheiro, não desbotam e nem soltam as tiras”, aqui também a conexão se realizada volta-se para os “pés ausentes”.
“Lugares fora do corpo” nas esculturas de Marta Strambi correspondem a um lugar de representação em que nossos gestos parecem soltar ou desprender peles, no entanto o corpo não se encontra presente, o corpo da artista também não (nas performances), fica em seu lugar uma lembrança, uma idealidade como a da arte grega. A pista para esta compreensão encontra-se na performance com o título: “Assim mesmo”, onde a artista designa a performer Renata Gession para incorporar uma veste de pele e fazer crochê do seu próprio leite em forma de linha de silicone que sai de seu seio. O leite sai do corpo e vai sendo tecido que por sua vez demonstra a volta ao conceito inicial do trabalho à pele. A qualidade destes trabalhos reside em sua lógica intrincada na construção de metáforas e de ter criado simulacros, o que em nosso ponto de vista, reafirmamos as referências greco-romanas, sem as quais o simulacro não poderia ser construído. Referências profundas e ocultas, que afinal de contas não se encontram nada distantes de nossa cultura atual, e ainda com as quais estabelecemos as comparações estética, ética e política com os destinos da nossa cultura, assim como neste trabalho.
agosto de 2000