Por Daniela Bousso
In “In Extremis”, exposição MAC, Campinas, 1994
In Extremis
Parece que o espírito morno, niilista e impessoal da cena artística dos anos 80 vem se despedindo nessa primeira metade dos 90 para ceder lugar às questões éticas e pessoais na arte. “ Assuntos proibidos” – política, religião ou mística, a ideologia, os “estados de alma”, os confrontos com a realidade, (cuja ausência resultou no que eu chamo de arte de “revestimento” ou de “fachada”) agora voltam à tona na manifestação artística com tamanha força que por mais estranho que nos pareça não podemos mais omiti-los ou deixar de abordá-los a partir de uma ótica que se volte para a compreensão do fenômeno da vida nos dias de hoje. A visão social e antropológica volta a inserir no cenário das artes configurando uma espécie de novo romantismo, impregnado de simbologia, nas poéticas da década de 90.
Seis artistas emergentes abordam através de suas obras esse “estado de alma” que traduziria novas posturas para a arte dessa década.
Eliane Duarte e Marta Strambi trabalham com sobras. Eliane recupera fragmentos de lona da produção pictórica de outros artistas. Construindo vísceras e veste, a poética do rejunte e da construção estabelece a mística religiosa (veste/hábito), a luta de classes, (o hábito faz o monge?) o embate entre masculino/feminino. Vísceras, “guts” em inglês. “recompor a sobra”, “recompor o espaço mundo”, “costurar à mão é um ato feminino de paciência”, diz a artista. (Tempo?)
Marta Strambi opera com as sobras da sociedade industrial. A signica da contemporaneidade exposta – preocupação ecológica – estabelece o confronto com a realidade. O ilusório deposto. Plásticos cordonados, queimados e costurados. Peles, peles suturadas! Estranhos invólucros reciclados da indústria. Grafismos decorrentes da queima do plástico conferem dimensão gráfica às peles que se expandem no espaço. (O tempo resiste).
O mineiro Ronaldo Macedo transfere vivências pessoais para a obra. Solidão, espaço de coação e a convivência cotidiana com a ideia da morte são traduzidos através do imaginário do cárcere. Suas caixas pretas (dentro das quais as imagens estão contidas) são convites a pequenas espiadelas que geram um esforço para se obter uma visão geral. Vigiar ou ser vigiado? Exala o questionamento a tudo que nos rodeia: a exaltação do incômodo de ser vigiado gera a metáfora, remissiva ao panoptismo, técnica desenvolvida nas prisões do século XVIII onde o prisioneiro era vigiado sem saber.
Fabio de Bittencourt e Vera Martins trabalham com o simbólico, com o profano, com o lúgubre e o entrevado. No trabalho de Bittencourt, a criação de um espaço modificador da percepção transparece nas costuras, na libido e na tormenta dos seus amarrados/costurados e torturados. Seu expressionismo recria bonecos punks, carecas e orelhudos. A solidão, a violência e o universo soturno das grandes metrópoles são abordados através de signos que nos remetem à profanação do sagrado através de tortura de alma e da libido perversa.
Vera Martins condensa estrutura matéria e temática fúnebre. Utiliza lonas, tecidos e formas geométricas (borrachas) impregnados de pigmentos de tonalidades oxidadas, fazendo referência a cemitérios e à morte. O sentimento de angústia paira pela opacidade cromática saturada das telas, no peso do silêncio dos tons surdos, na obscuridade da alusão tumular e na evocação de ausências.
O carioca Walter Guerra nos propõe estruturas vertebradas realizadas em vergalhão de ferro. O contraponto visível/invisível se espraia na ocupação do espaço físico, a costura se revela nos esqueletos encaixáveis onde a recuperação do tempo entre o encaixe de uma vértebra e outra é tentativa de busca de congelamento de um presente contínuo, busca de reversibilidade antes que o futuro se sobreponha ao espaço. A corporeidade do visível é o presente – os cheios do esqueleto, ao mesmo tempo intangíveis pelo vazio criado por cada espaço invisível do entre vértebras. (resiste o tempo) Tempo costurado, tempo capturado.
Esses seis artistas têm em comum na linguagem plástica propriamente dita a presença de costuras/suturas, o trabalho com materiais recuperados ou reciclados, a construção sensória.
Por outro lado, suas linguagens plenas da “visão pessoal do artista” nos fazem pensar na ilusão que a arte pode recriar, no contraste entre real e imaginário.
Baudelaire, o maior poeta romântico, alertava a burguesia em sua “ode aos burgueses” e solicitava sua atenção; avisava que esta poderia viver sem pão ou sem vinho, porém jamais, jamais sem poesia! Se a poética gera ilusão é para que se tangencie a esperança, para que se recupere a capacidade de sonhar e, talvez assim, para que se criem forças mobilizadoras que nos permitam interagir com o mundo.
As obras desses artistas aludem a emergências latentes como a crítica social, a ética, o medo, o simbólico.
Seriam eles, amadurecendo suas linguagens juntamente com vários outros da sua geração, os formadores de uma poética renovadora, romântica por excelência, que abrirá novas possibilidades para a arte?
Julho de 1994