Por Beth Leone
In catálogo da exposição Com que corpo eu vou?
Espaço Unicid, São Paulo, 2001
O Espírito do Tempo
Os paradigmas são estruturas de pensamento que de modo inconsciente comandam nosso discurso. A história do mundo e do pensamento ocidentais foi comandada por um paradigma de disjunção, afirma Edgar Morin. Separou-se o espírito da matéria, a filosofia da ciência, o sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento. Até chegarmos a “cisão entre o corpo real e o corpo imagético”. Não é a primeira vez que este tema aqui mesmo neste espaço é colocado, nem se esgota nesta coletiva.
Inúmeros filósofos participam desta discussão, entre eles gostaríamos de destacar o pensador alemão Dietmar Kamper (1936-2001). Ele pensa o corpo humano, que nos últimos séculos foi objeto de uma terrível operação de disciplina. A liberdade do espírito e a liberdade do intelecto foram adquiridas a preço da não liberdade do corpo humano, que é a verdadeira vítima desse processo histórico.
Para Kamper, como o corpo continua sendo o cadáver no qual foi historicamente transformado, buscou em suas obras desenvolver uma teoria do corpo vivo que fosse, ela mesma viva. Pensou nos imensos efeitos que a silenciosa transformação do corpo em uma imagem do corpo, a qual nega a diferença entre imagem e corpo.
Para esta mostra coletiva convidamos quatro artistas plásticos e o estilista mineiro Ronaldo Fraga.
Lia Chaia é a mais jovem do grupo e “Desenho-corpo” é um registro em vídeo de sua performance. Seu próprio corpo é o suporte, sua pele é território livre por onde desliza a ponta de uma caneta esferográfica de cor vermelha, num vai e vem contínuo, desenhando linhas que pouco a pouco preenchem o espaço, ao ritmo de seu batimento cardíaco. Ao longo de 51 minutos, tempo que dura a tinta da caneta e a própria fita, nosso olhar se deixa levar pela tatilidade.
O emblema da vida contemporânea é a aceleração que se transformou em signo, a velocidade da observação. O artista plástico Pazé criou um boneco que é a sua réplica, em tamanho natural, feito em látex, que manipulado transita pelo centro histórico da cidade: Sentado em um vagão do metro da Sé, Transeunte inicia um percurso que se insere em um triângulo com vértices, formados pela Igreja do Carmo, São Bento e São Francisco e limita-se às ruas Direta, São Bento e XV de novembro. Transeunte esteve, ano passado, por trinta dias percorrendo a metrópole, permanecendo dez horas em cada ponto fixo. Por uma questão de paralaxe, de posicionamento, pensamos que vemos, mas nada enxergamos por inteiro deste tecido urbano esgarçado. Mas Transeunte pode, vagarosamente, caminhar em sacadas, paredes e telhados, livremente, sem barreiras, como num sonho, pura ficção que só a arte pode nos proporcionar. A fotografia apresentada sequencialmente em vídeo foi o meio escolhido para o registro do percurso, prestando-se a estrutura de ficção.
Nos vídeos o desejo de liberdade, nos objetos de Marta Strambi a maldição que o próprio homem criou para si. É a tendência do trabalho em desrespeitar os limites e tomar conta de nossa vida como algo desmedido, é a “absolutização do trabalho em nossa sociedade, que está adquirindo o mecanismo compulsivo” (Kamper). Suas obras são críticas ao nosso sistema socioeconômico e, como ela mesma afirma, trata-se da questão do trabalho humano como um paradoxo, violência/sobrevivência. Seus trabalhos aqui apresentados são “Escravo”, “Contínuo” e “Clavas”. Este último são picaretas, seus cabos prolongam-se em forma de pés humanos, moldados em silicone. Nos cabos a marca “made in Brasil” e no pé esquerdo a tatuagem de um machado de Xangô. Há uma inversão, instrumentos que foram criados pelo homem para servi-lo, acabam incorporando o próprio criador, amalgamados, como a própria matéria que a artista utiliza, o silicone que é maleável.
As primeiras esculturas de Felix Bressan abordavam a roupa como “epiderme de fetiches”. Eram inspiradas em antigas peças íntimas do vestuário feminino (anquinhas, saias de armação e espartilhos). Das roupas para objetos do cotidiano, que com muita graça os estetizava. Neste momento de sua produção escultórica Bressan funde o ferro. “Percebo que ao mesmo tempo em que busco a harmonia formal, há uma necessidade de quebrá-la de maneira violenta, opondo-lhe uma idéia ou mesmo um elemento físico, rompendo assim com sua docilidade, liberando uma animalidade tácita”. As obras que aqui expõe são Sem Título 2001/2002 ferro fundido e forcados e PIA I ferro fundido e parafusos 62 x 120x 400cm. Expostas no início do ano em individual deste artista, é impossível não reproduzir as palavras de Angélica de Moraes que escreve em seu catálogo “o foco que orienta toda a produção escultórica de Bressan é a memória de um corpo ausente. O desejo. Ele evoca anatomias fantasmais, fiapos de lembrança do tato e da pele”.
O espírito do tempo, ou seja, a simultaneidade epistemológica age em diferentes áreas e em todos os tempos. Para esta mostra, que faz apenas um recorte e reflete algumas questões culturais, convidou também para dividir o espaço nesta coletiva o estilista mineiro Ronaldo Fraga. Sua presença justifica-se neste caso, não pelos modelos que cria, mas pela forma que Ronaldo apresentou sua criação no desfile da coleção do inverno 2002, “Corpo-Cru’, já que o que refletimos é sobre corpo vivo/corpo morto.
Em uma estrutura de ferro que girava, como carnes em frigoríficos, bonecos de madeira foram pendurados e assim apresentavam os modelos criados. Ora apareciam por inteiro, ora eram apenas partes deles, como corpos esquartejados, que mostravam meias, bolsas ou sapatos. Toda esta enorme estrutura, e remontada neste espaço, tem outro fim: nos dá a oportunidade de fazermos esta análise que deliberadamente coloca lado a lado artistas plásticos, com suas trajetórias de buscas formais e estéticas, e o mundo da moda, comungando todos do mesmo universo cultural.
Sabemos que nosso corpo não é só biológico, mas também cultural. Atrelados às imagens e valores que nos são impostos, desejamos objetos não só para parecer, mas para pertencer. Assim, expomos quarenta camisetas feitas ano passado, junto a meninos e meninas da Febem, numa oficina orientada por diferentes profissionais que contou com a participação de Ronaldo Fraga.
Se não houvesse alguma escapatória para este nosso corpo, nada disso adiantaria. Se Dietmar Kamper desenvolveu toda uma sociologia do corpo, é ele também que nos aponta um caminho. A única saída é voltarmos a pensar com o corpo, com as vísceras (deixar a cabeça de lado), de dentro para fora, com todos os nossos sentidos, os cinco já conhecidos e não sentidos, e o sentido da propriocepção, que é o sentido que nos faz sentir o próprio corpo.
BIBLIOGRAFIA
KAMPER, Dietmar. O trabalho como vida. São Paulo, Annablume, 1998.
KAMPER, Dietmar. O corpo vivo, o corpo morto in http://sesc.uol.com.br/sesc/hotsites/imagemviolencia/conferencias.htm cap.02/03/2001